sábado, 4 de junho de 2016

Porquê este blog e até onde vai

Agora são 22 meses depois...
Há sempre um "antes" e um "depois". Todos os temos. A diferença entre o meu "antes" e o meu "depois" não é de vestir um número 58 ou 60 para um 36 ou 38; é antes de enfrentar a morte e depois de ter sobrevivido. Antes de estar espalhada aos pedaços nos caminhos desta vida e depois quando tento recompor o puzzle e construir um novo eu.
Os otimistas e não dramáticos dizem “que sorte, estás viva”. Os pessimistas nem sei o que dizem porque, de facto, não me dizem nada. Eu tenho mais tendência para o pessimismo e, muitas vezes, nem mesma sei o que me digo ou o que penso. Ah, há os que dizem “Que azar tiveste”, ou pior “Pensamento positivo”. É isto que eu detesto. Parem! Não é uma questão de sorte ou de azar, e essa do pensamento positivo tem muito que se lhe diga e de que se escreva mas fica para outra ocasião. É demasiado simplista pensar que foi azar (mesmo assim, prefiro menos sorte). A vida tem um curso, fazemos as nossas escolhas. O que ocorre depois são consequências dessas escolhas (feliz ou infelizmente, influenciadas pelas escolhas de outras pessoas). Possivelmente também não é tão simplista assim mas é o que penso na maior parte das vezes.
A minha escolha foi não aguardar pela lista de espera dos hospitais públicos e que me parecia interminável para resolver a minha obesidade mórbida (que nome!): início de síndrome metabólico; hipertensão arterial; disfunção da tiróide; graves problemas de coluna e das articulações que no último ano me tinham atirado duas vezes para a cama sem poder andar; e, definitivamente, o que me levou a compreender que, ou resolvia essa obesidade ou não viveria muito tempo, uma grave apneia de sono. Também, claro, havia, e era muito importante, a minha autoimagem e a minha autoestima (ufa! Não acredito que escrevi isto! Como os obesos adoram a desculpa de serem bem-dispostos e a crença de serem felizes com o seu corpo!). Os americanos dizem “Only Santa looks fine with a belly”. E é verdade! É tão verdade! Eu vivia num corpo que não tinha nada a ver comigo e com o qual não me identificava. Após mais de 20 anos de tentativas falhadas de perda de peso e efeito “yo-yo” cheguei onde cheguei. A cirurgia bariátrica surgiu como a (repare-se não estou a dizer “uma”) forma de resolver muitos casos de obesidade mórbida. Continuo a acreditar que há outras soluções mas em alguns casos esta é “a” resolução. Quando me perguntam “Voltavas (ou voltava) a fazer?”, não tenho dúvida: Sim! Não sou inconsciente de saber que por nada a faria se soubesse o que se ia passar. Mas como não saberia, voltava a fazer, sim. Até porque o que se passou e, principalmente, o que se passa, não foi nem é causa direta da cirurgia.
Como eu escrevia acima, não quis esperar pelo meu lugar na imensa lista do hospital público da cidade onde vivo. Sabia de dois casos operados num hospital privado da capital portuguesa, procurei na internet (decididamente, o Google não é o melhor local para procurar informações de saúde) por médicos portugueses com mais experiência e lá o encontrei precisamente nesse hospital. Indo à sua consulta, a proposta que me apresentou era a oposta à do cirurgião de Ponta Delgada, alegada e ironicamente “para me preservar mais o estômago”, acrescentando ainda, se eu “tivesse 60 anos, mas com 50, não ficaria tão mutilada”. Isto deveria ter-me levado a uma escolha que não fiz: ouvir uma outra opinião. Mas a minha escolha não foi nesse sentido. Marquei a cirurgia para daí a 4 meses, 8 de setembro (não foi logo nessa semana devido aos meus compromissos profissionais) quando eu teria todo o novo ano letivo planeado, antes das aulas começarem e só não foi em agosto porque o próprio cirurgião estava de férias. Fui operada no seu primeiro dia de retorno ao trabalho.
Portanto, escolhi não esperar e decidi ser operada pelo médico que a fazer fé no que estava escrito no site desse hospital (aprendi muita coisa sobre hospitais privados; uma que não tenho a certeza é o tipo de propaganda - perdão, publicidade- que fazem), era quem em Portugal mais experiencia tinha neste tipo de cirurgias.
Pois é. Mas ser cirurgião é muito mais do que isto. É estar preparado para complicações. Fazer um “sleeve”, principalmente quando se fazem 3 ou 4 por dia, acaba por ser como escovar os dentes. A sua ciência e o seu saber também obrigatórios estão na resolução dos problemas que podem surgir. Porque acima de tudo é um médico, não é um talhante.
1% das pessoas submetidas a cirurgia bariátrica terão uma fístula. Há estatísticas que apontam para menos e outras que vão aos 5%. Dos doentes com fístula, 5% farão gastrectomia total. Depois de fazerem tratamento médico e eventualmente cirúrgico e se gastarem as possibilidades. Diz a evidência científica nas revisões sistemáticas que encontrei (será que esse cirurgião opera tanto que não tem tempo para ler?) e, encontrei tarde demais, já estava em casa, um ano depois (mas não era eu que tinha que me instaurar tratamento, pois não?), que as melhores práticas no tratamento de uma fístula após cirurgia bariátrica é o que me instauraram nesse hospital em conjugação com o que me fizeram em Ponta Delgada (já demasiado tarde e, verdade seja dita, que meses depois foi tentado nesse hospital lisboeta para onde fui transferida daqui, por outro cirurgião – afinal, se calhar no meio disto tudo é preciso um pouco de sorte… e me leva a questionar se ali os médicos não falam uns com os outros). A fístula, dizem os artigos científicos, é a complicação mais temida pelos cirurgiões (imagine-se pelos doentes…). Estranhamente, não fui advertida para essa possibilidade. Curiosamente não sabia o que era (sou de obstetrícia, ainda que nos dias de hoje tenha feito um curso teórico prático – e que prático! – de gastroenterologia).
Esta é uma consequência direta da cirurgia. Todas as complicações que tive, desde choque séptico e coma até incapacidade de me locomover a não ser em cadeira de rodas, passando por várias peritonites, várias cirurgias (nesse hospital era uma por semana), muitas anestesias gerais (15) infeção do cateter venoso central e uma reação rara a antibióticos que me deixou quase sem leucócitos e com muita febre, foram consequência da incapacidade de tratar adequadamente a fístula e do sistema de intervenção do referido hospital (misturar saúde e dinheiro pode mesmo ser explosivo). Que não tenha sido atempado não o consigo considerar pois quando o cirurgião soube das minhas queixas agiu imediatamente (ainda que não ter adiado a cirurgia de emergência  por eu e o meu filho Diogo lhe termos pedido para operar imediatamente naquela noite de 11 de setembro de 2014 – sim também tive o meu 11 de setembro – pois de contrário talvez não estivesse aqui a escrever isto). Se algum atraso houve foi dos enfermeiros que nunca valorizaram as minhas queixas. Depois, o tratamento das complicações foi aos tiros no escuro ou em navegação à vista que vai dar no mesmo. Até as ter todas, para usar a expressão de um médico que estava a fazer doutoramento e me pediu autorização para apresentar o estudo do meu caso: “A Sra. enfermeira (estranhamente para os enfermeiros fui sempre a Sra. Paula) não teve uma complicação; teve todas as complicações que estão descritas.” E hoje ele acrescentaria mais duas ou três.
Após cerca de cinco meses de internamento, nesse hospital e em Ponta Delgada, ironicamente com a minha vida a ser salva pelo cirurgião que me operaria aqui, e de um ano letivo sem trabalhar (estava previsto que começasse a 20 de setembro, comecei a 28 de junho), fui retomando (???) a minha vida.
Vivo com sequelas, algumas para a vida. Todos os problemas de saúde que eu tinha por ser obesa desapareceram ou são quase inexistentes. Fiquei com outros. Talvez menos sérios ou potencialmente perigosos (os riscos da obesidade são muito silenciosos e insidiosos) mas mais incomodativos.
Vou seguindo em frente, pegando nos pedaços que estavam perto e avançando, desviando e recuando. De vez em quando cai um pedaço ou encontro outro que estava perdido no caminho e no qual tropeço. Encorajada a escrever sobre o assunto, não consigo. É reviver e tornar real o que quero esquecer. Mas sei que só enfrentando esses demónios os posso integrar na minha vida. Esta é a principal razão porque o começo a fazer. Quando comecei a escrever sobre a situação de saúde do meu marido,  a nossa saga, sabia que terminaria quando estivesse resolvida. Agora não imagino o que me levará a parar de escrever aqui…
Porém, não quero que seja um muro de lamentações (tenho espaços na minha casa mais adequados para isso). Vou escrever o que surgir em cada dia. Para me obrigar a parar, pensar e, principalmente, sentir. Principalmente parar e sentir porque pensar já penso muito, talvez demais.
Vou-me (re)visitar, não me vou desnudar. Desengane-se quem pensar isso. Sou um brutal iceberg e nem 99% do que é a minha vida surgirá aqui. Imagine-se o resto.

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