Agora são 22 meses depois... |
Os otimistas e não dramáticos dizem “que sorte, estás viva”.
Os pessimistas nem sei o que dizem porque, de facto, não me dizem nada. Eu
tenho mais tendência para o pessimismo e, muitas vezes, nem mesma sei o que me
digo ou o que penso. Ah, há os que dizem “Que azar tiveste”, ou pior “Pensamento
positivo”. É isto que eu detesto. Parem! Não é uma questão de sorte ou de azar,
e essa do pensamento positivo tem muito que se lhe diga e de que se escreva mas
fica para outra ocasião. É demasiado simplista pensar que foi azar (mesmo
assim, prefiro menos sorte). A vida tem um curso, fazemos as nossas escolhas. O
que ocorre depois são consequências dessas escolhas (feliz ou infelizmente,
influenciadas pelas escolhas de outras pessoas). Possivelmente também não é tão
simplista assim mas é o que penso na maior parte das vezes.
A minha escolha foi não aguardar pela lista de espera dos
hospitais públicos e que me parecia interminável para resolver a minha
obesidade mórbida (que nome!): início de síndrome metabólico; hipertensão
arterial; disfunção da tiróide; graves problemas de coluna e das articulações que
no último ano me tinham atirado duas vezes para a cama sem poder andar; e,
definitivamente, o que me levou a compreender que, ou resolvia essa obesidade
ou não viveria muito tempo, uma grave apneia de sono. Também, claro, havia, e
era muito importante, a minha autoimagem e a minha autoestima (ufa! Não acredito
que escrevi isto! Como os obesos adoram a desculpa de serem bem-dispostos e a
crença de serem felizes com o seu corpo!). Os americanos dizem “Only Santa looks fine with a belly”. E é
verdade! É tão verdade! Eu vivia num corpo que não tinha nada a ver comigo e
com o qual não me identificava. Após mais de 20 anos de tentativas falhadas de
perda de peso e efeito “yo-yo” cheguei onde cheguei. A cirurgia bariátrica
surgiu como a (repare-se não estou a dizer “uma”) forma de resolver muitos
casos de obesidade mórbida. Continuo a acreditar que há outras soluções mas em
alguns casos esta é “a” resolução. Quando me perguntam “Voltavas (ou voltava) a
fazer?”, não tenho dúvida: Sim! Não sou inconsciente de saber que por nada a
faria se soubesse o que se ia passar. Mas como não saberia, voltava a fazer,
sim. Até porque o que se passou e, principalmente, o que se passa, não foi nem
é causa direta da cirurgia.
Como eu escrevia acima, não quis esperar pelo meu lugar na
imensa lista do hospital público da cidade onde vivo. Sabia de dois casos
operados num hospital privado da capital portuguesa, procurei na internet (decididamente,
o Google não é o melhor local para procurar informações de saúde) por médicos
portugueses com mais experiência e lá o encontrei precisamente nesse hospital.
Indo à sua consulta, a proposta que me apresentou era a oposta à do cirurgião
de Ponta Delgada, alegada e ironicamente “para me preservar mais o estômago”, acrescentando
ainda, se eu “tivesse 60 anos, mas com 50, não ficaria tão mutilada”. Isto
deveria ter-me levado a uma escolha que não fiz: ouvir uma outra opinião. Mas a
minha escolha não foi nesse sentido. Marquei a cirurgia para daí a 4 meses, 8
de setembro (não foi logo nessa semana devido aos meus compromissos
profissionais) quando eu teria todo o novo ano letivo planeado, antes das aulas
começarem e só não foi em agosto porque o próprio cirurgião estava de férias.
Fui operada no seu primeiro dia de retorno ao trabalho.
Portanto, escolhi não esperar e decidi ser operada pelo
médico que a fazer fé no que estava escrito no site desse hospital (aprendi
muita coisa sobre hospitais privados; uma que não tenho a certeza é o tipo de
propaganda - perdão, publicidade- que fazem), era quem em Portugal mais experiencia
tinha neste tipo de cirurgias.
Pois é. Mas ser cirurgião é muito mais do que isto. É estar preparado
para complicações. Fazer um “sleeve”, principalmente quando se fazem 3 ou 4 por
dia, acaba por ser como escovar os dentes. A sua ciência e o seu saber também obrigatórios
estão na resolução dos problemas que podem surgir. Porque acima de tudo é um
médico, não é um talhante.
1% das pessoas submetidas a cirurgia bariátrica terão uma
fístula. Há estatísticas que apontam para menos e outras que vão aos 5%. Dos
doentes com fístula, 5% farão gastrectomia total. Depois de fazerem tratamento
médico e eventualmente cirúrgico e se gastarem as possibilidades. Diz a
evidência científica nas revisões sistemáticas que encontrei (será que esse
cirurgião opera tanto que não tem tempo para ler?) e, encontrei tarde demais,
já estava em casa, um ano depois (mas não era eu que tinha que me instaurar
tratamento, pois não?), que as melhores práticas no tratamento de uma fístula
após cirurgia bariátrica é o que me instauraram nesse hospital em conjugação com o que me fizeram em
Ponta Delgada (já demasiado tarde e, verdade seja dita, que meses depois foi
tentado nesse hospital lisboeta para onde fui transferida daqui, por outro
cirurgião – afinal, se calhar no meio disto tudo é preciso um pouco de sorte… e
me leva a questionar se ali os médicos não falam uns com os outros). A fístula,
dizem os artigos científicos, é a complicação mais temida pelos cirurgiões
(imagine-se pelos doentes…). Estranhamente, não fui advertida para essa
possibilidade. Curiosamente não sabia o que era (sou de obstetrícia, ainda que
nos dias de hoje tenha feito um curso teórico prático – e que prático! – de gastroenterologia).
Esta é uma consequência direta da cirurgia. Todas as
complicações que tive, desde choque séptico e coma até incapacidade de me
locomover a não ser em cadeira de rodas, passando por várias peritonites,
várias cirurgias (nesse hospital era uma por semana), muitas anestesias gerais (15)
infeção do cateter venoso central e uma reação rara a antibióticos que me
deixou quase sem leucócitos e com muita febre, foram consequência da
incapacidade de tratar adequadamente a fístula e do sistema de intervenção do referido
hospital (misturar saúde e dinheiro pode mesmo ser explosivo). Que não tenha
sido atempado não o consigo considerar pois quando o cirurgião soube das minhas
queixas agiu imediatamente (ainda que não ter adiado a cirurgia de emergência por eu e o meu filho Diogo lhe termos pedido para operar
imediatamente naquela noite de 11 de setembro de 2014 – sim também tive o meu
11 de setembro – pois de contrário talvez não estivesse aqui a escrever isto).
Se algum atraso houve foi dos enfermeiros que nunca valorizaram as minhas
queixas. Depois, o tratamento das complicações foi aos tiros no escuro ou em navegação
à vista que vai dar no mesmo. Até as ter todas, para usar a expressão de um médico
que estava a fazer doutoramento e me pediu autorização para apresentar o estudo
do meu caso: “A Sra. enfermeira (estranhamente para os enfermeiros fui sempre a
Sra. Paula) não teve uma complicação; teve todas as complicações que estão
descritas.” E hoje ele acrescentaria mais duas ou três.
Após cerca de cinco meses de internamento, nesse hospital e
em Ponta Delgada, ironicamente com a minha vida a ser salva pelo cirurgião que
me operaria aqui, e de um ano letivo sem trabalhar (estava previsto que
começasse a 20 de setembro, comecei a 28 de junho), fui retomando (???) a minha
vida.
Vivo com sequelas, algumas para a vida. Todos os problemas
de saúde que eu tinha por ser obesa desapareceram ou são quase inexistentes.
Fiquei com outros. Talvez menos sérios ou potencialmente perigosos (os riscos
da obesidade são muito silenciosos e insidiosos) mas mais incomodativos.
Vou seguindo em frente, pegando nos pedaços que estavam
perto e avançando, desviando e recuando. De vez em quando cai um pedaço ou
encontro outro que estava perdido no caminho e no qual tropeço. Encorajada a
escrever sobre o assunto, não consigo. É reviver e tornar real o que quero
esquecer. Mas sei que só enfrentando esses demónios os posso integrar na minha
vida. Esta é
a principal razão porque o começo a fazer. Quando comecei a escrever sobre a
situação de saúde do meu marido, a nossa saga, sabia que terminaria quando estivesse
resolvida. Agora não imagino o que me levará a parar de escrever aqui…
Porém, não quero que seja um muro de lamentações (tenho
espaços na minha casa mais adequados para isso). Vou escrever o que surgir em
cada dia. Para me obrigar a parar, pensar e, principalmente, sentir. Principalmente
parar e sentir porque pensar já penso muito, talvez demais.
Vou-me (re)visitar,
não me vou desnudar. Desengane-se quem pensar isso. Sou um brutal iceberg e nem
99% do que é a minha vida surgirá aqui. Imagine-se o resto.
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